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segunda-feira, 13 de junho de 2011

DOUTRINA - A COMPREENSÃO DOS PRECONCEITOS NO DIREITO DE FAMÍLIA PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

BELMIRO PEDRO WELTER, Promotor de Justiça, Mestre e Doutorando em Direito pela UNISINOS, Professor e autor de obras de Direito de Família.

(escrito em junho.2006)

SUMÁRIO: 01) considerações iniciais; 02) a compreensão dos preconceitos no Direito de Família pela hermenêutica filosófica; 03) considerações finais; 04) referências bibliográficas.

01 Considerações iniciais
Buscando cada vez mais uma evolução do Direito de Família, justamente porque a humanidade sempre está evoluindo, o que, aliás, é da natureza humana, trago à comunidade jurídica um novo olhar, não mais com base na dogmática jurídica, nem na hermenêutica tradicional, mas, sim, com âncora na hermenêutica filosófica, de autoria do alemão Hans-Georg Gadamer, à medida que a “hermenêutica é a Arte do entendimento”, é filosofia e “uma forma de realização da vida social humana, que em última formalização representa uma comunidade de diálogo” .
O rancho familiar é o apanágio da humanidade, em que há necessidade de diálogo, de conversação, de entendimento, de aceitação da diferença, de ouvir e de ser ouvido. O diálogo não é só condição de possibilidade da hermenêutica, mas, principalmente, condição de possibilidade de convivência e compartilhamento em família, em que a linguagem somente se dá no diálogo, no vaivém da palavra, na conversação, no aceitar que o outro possa ter razão, na retórica , porquanto a linguagem “nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer”. Contudo, um dos grandes problemas da linguagem em família é que seus membros, cônjuges, conviventes, pais, filhos, irmãos, parentes, têm, muitas vezes, ouvidos de mercador, de não estarem mergulhados na mesma linguagem genética, afetiva e ontológica, e de ouvir apenas a si mesmo, buscando com tanta compulsividade os seus próprios interesses que não conseguem ouvir o que dizem os membros da família. É por isso que Gadamer diz que a capacidade constante de voltar a dialogar, de ouvir o outro, é a verdadeira elevação do homem a sua humanidade, porque “a incapacidade para o diálogo parece-me ser mais a objeção que se lança contra aquele que não quer seguir nossas idéias do que uma carência real no outro”.
Portanto, em Gadamer, é possível extrair uma leitura da família, porque a sua doutrina da compreensão, da linguagem universal, significa conversar, perguntar e responder, de ouvir e ser ouvido, da espiral hermenêutica, do método universal, da suspensão dos preconceitos, da fusão de horizontes, da tradição, enfim, da célebre mensagem de que “não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra” . Onde reside a palavra, a conversação, o diálogo, continua o autor, compreende-se a verdade do texto, do ser humano, da família, que será desvelada unicamente dentro da genética, da afetividade e da ontologia, porquanto “compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana”.
O afeto, o amor, é arte , canto , poesia, sabedoria, linguagem , educação, conhecimento, inteligência , saúde , felicidade, liberdade, enfim, o afeto é a seiva que alimenta o sentido da vida, que se engendra e se identifica nos mundos genético, afetivo e ontológico. Mas o afeto, o amor, também é desafeto e desamor, porque, “ao mesmo tempo, nos cega e nos ilumina”, fazendo parte da existência , da natureza humana , da linguagem do ser humano ser-em-um-mundo. O afeto não é apenas um direito fundamental individual e social de afeiçoar-se ao outro ser humano (artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição do País) , como também um direito à integridade de sua natureza humana, genética, afetiva e ontológica. Mas, a família, lembra a doutrina , não é unicamente afetiva, mas também desafetiva, residindo no País um falso preconceito quanto às famílias, ao se pensar que sempre respiram a afetividade, havendo, pois, a necessidade de “acabar com a imagem idealizada da família feliz, que o Estado protege e ninguém pode interferir. É preciso chamar a atenção da sociedade de que a família não é exclusivamente um lugar de afeto!”. Para tanto, cresce a importância da hermenêutica filosófica no Direito de Família, principalmente porque a compreensão familiar afasta “a hipocrisia, a falsidade institucionalizada, o fingimento, o obscurecer dos fatos sociais, fazendo emergir as verdadeiras valorações que orientam as convivências grupais” .
A afetividade não é somente o direito de amar, de ser feliz, mas também o dever de ser leal, solidário e, principalmente, compreender o outro membro familiar, o que significa um rompimento com a individualidade e com os preconceitos. Nessa senda, Gadamer  aduz que a compreensão do Outro, que, em Direito de Família, é o cônjuge, o convivente, pais, avós, filho, irmão, parentes, “rompe com a centralidade de meu eu, à medida que dá a entender algo”. É dizer, o cerne da compreensão em família é deixar que o outro fale, aceitando seus argumentos, compreendendo o que ele diz e, de quebra, admitindo que ele pode estar certo e nós errados, pois, na montanha da vida , a possibilidade de o outro ter direito é a alma da hermenêutica . A compreensão significa acordo, aceitação da alteridade, da diferença entre todos os humanos, mediante o envolver-se de seus membros por meio da pergunta e da resposta, do entrar na conversação, permitindo ser interpelado e interpelar, abrindo espaço à diferença ontológica, que reside em cada ser humano, enfim, esquecer a tradição histórica da posse e do domínio no rancho familiar, deixando que nele habite a liberdade, o vir-à-fala, o vaivém do diálogo, a aceitação e a possibilidade de que algo seja dito, sem que isso signifique ofensa, e sim um direito/desejo do ser humano em ouvir e ser ouvido. Com razão, nesse sentido, o filósofo alemão Gadamer , ao aduzir que “ninguém é mais intolerante do que aquele que quer comprovar que aquilo que ele diz deve ser a verdade”. O autor adverte que ser compreensivo, de antemão, mesmo diante das réplicas do outro, “nada mais é do que tirar o corpo fora do postulado feito pelo outro. É um modo de não se deixar dizer nada”.
Assim, é posta à disposição da comunidade jurídica e política essa outra forma de compreensão do Direito de Família, mediante um olhar pela hermenêutica filosófica, à medida que tudo nesta vida é filosofia, não pelo mundo das idéias, como queria Platão, e sim pela magna doutrina gadameriana, de que a hermenêutica é realidade, é filosofia, é práxis, é o dia-a-dia do ser humano, é o modo de ser, o jeito de ser, são as circunstâncias de cada humano, enfim, é a diferença ontológica que reside em cada um dos bilhões de humanos.

02 A compreensão dos preconceitos no Direito de Família pela hermenêutica filosófica
O pré-juízo (prejuízo, preconceito, pré-conceito, juízo prévio, conceito prévio), em Gadamer, é resgatado de seu caráter depreciativo recebido da tradição iluminista. O Iluminismo , informa Gadamer, impôs o matiz negativo ao termo preconceito (pré-conceito, prejuízo, pré-juízo, conceito prévio, compreensão prévia), porque ainda não estaria fundamentado, tendo em vista que, pela dogmática jurídica, somente tem sentido o que é legitimado racionalmente, o que se dá mediante um método, que não deixa espaço para outros modos de certeza. Todavia, Gadamer desvelou o conceito de preconceito também no sentido positivo, vez que existem preconceitos autênticos (puros, legítimos) e inautênticos (impuros, ilegítimos). Isso quer dizer que a palavra pré-juízo não possui conotação apenas negativista, e sim um juízo prévio (negativo ou positivo) que se forma antes da compreensão do texto, que sempre pode ser revisto, re-projetado, pois a expressão preconceito não significa, em princípio, um falso juízo, com conceito prévio negativo, e sim um juízo que se forma antes da efetivação da compreensão, podendo ser valorado positiva ou negativamente .
A pré-compreensão, o pré-conceito, o juízo prévio, não decorre unicamente do texto como também do ser humano e da família, isso porque interpretar a vida humana é como interpretar um texto recoberto por séculos de exegese distorcida. Quando da interpretação e da compreensão de um texto, do ser humano e da família, são necessárias a purificação de nossa prévia posição, preconceitos, aproximação e visão hermenêutica, para que elas sejam originais e genuínos . Esse é o grave problema da metafísica, da dogmática jurídica, porque o enunciado, a súmula, o verbete, a lei, a fala da autoridade, etc. seqüestram e devassam o texto original e a humanização do ser humano, ao não admitir a sucessiva interpretação e revelação dos diversos aspectos e sentidos.
A hermenêutica filosófica afasta esse véu metafísico, essa tranqüilidade tentadora dos operadores jurídicos e do Legislador, mediante corte vertical do acontecer do círculo da pré-compreensão, da tradição, da fusão de horizontes, dos pré-juízos autênticos e inautênticos, que se circunscrevem ao método fenomenológico, abissal, sem fundo, universal , em que a interpretação ocorre porque já houve a pré-compreensão do texto, pelo modo de ser-no-mundo do intérprete. Com a hermenêutica filosófica, o intérprete ajusta o dialogar, o conversar, o palavrear, com a realidade de que se fala no texto, porque a compreensão de um texto é uma ampla compreensão de si mesmo  e uma inserção em nosso horizonte de pré-conceitos diferentes, resultando uma reformulação das perspectivas que nos são próprias . É por isso que a pré-compreensão, o preconceito, não está atrelado ao ato de interpretar, porque, antes de interpretar, já houve a pré-compreensão, que não é um dos modos de agir da pessoa, e sim um modo de ser, não havendo, assim, um operador e nem um resultado, e sim um sentido. Está, assim, excluída a possibilidade de um método de interpretação, porque a atribuição de sentido se dá na abertura, no desvelar e no modo de ser do ser humano no mundo.
Para interpretar, doutrina Streck, necessitamos compreender e, para compreender, temos que ter uma pré-compreensão, em que a linguagem não é um objeto, uma vinculação entre sujeito-objeto, e sim um relacionamento de sujeito-sujeito, um horizonte aberto pela compreensão histórica da tradição, um fio condutor da virada da hermenêutica, fazendo brotar o sentido da estrutura do texto e a produção do Direito. No interpretar, pontifica Streck, o ser humano está sempre diante de uma situação concreta, uma singularidade, daquele caso, que nunca é igual ao outro. Por isso, “o que pode ser correto na sua ‘generalidade’ pode não ser verdadeiro na sua singularidade, uma vez que a verdade é sempre desvelamento de uma situação concreta, aquele caso, nas suas especificidades” . O que liga o intérprete à situação hermenêutica é a compreensão histórica da tradição, a hermenêutica filosófica, que é o (re)aparecimento dos fenômenos à luz do sentido próprio da vida , porque ninguém escapa da história, do passado e do presente, que são a proveniência do ser humano, que surte efeito nos fenômenos da convivência, significando um conjunto de acontecimentos e influências que atravessa o passado, presente e futuro .
A hermenêutica filosófica deixa de ser uma aproximação entre um sujeito e um objeto, passando a ser um relacionamento entre um sujeito e outro sujeito, não mediante um método de interpretação, mas, sim, com a utilização de todos os métodos, numa análise fenomenológica, sem fundo, abissal, universal, com lastro na fusão de horizontes, na pré-compreensão, na espiral hermenêutica, na compreensão histórica da tradição e nos preconceitos claros e opacos. Pela hermenêutica filosófica é vista a história, o mundo e a tradição da vida numa espiral hermenêutica entre passado, presente e futuro, em que são (re)velados os preconceitos, formando uma pré-compreensão do texto, afastando, portanto, a interpretação subjetiva, pessoal, do intérprete, para partir à pré-compreensão do texto, que quer dizer o conhecimento antes de compreender, decorrente do acontecer do método universal, fenomenológico, com o círculo hermenêutico, os preconceitos, a compreensão da tradição histórica e a fusão de horizontes, recuperando a historicidade do sentido do texto, pelo que a pré-compreensão é sempre produtiva, e não reprodutiva, pois é atualizada pelos fenômenos sociais que sempre estão se renovando. Numa só palavra, a compreensão do Direito de Família passa, necessária e obrigatoriamente, pelo filtro dos preconceitos impuros, que precisam ser purificados em cada nova compreensão do texto, da família, do ser humano, à medida que todo o ser humano está sendo alimentado, diuturnamente, pelos preconceitos preconceituosos, pelos preconceitos puros e impuros, emergindo, com isso, a necessidade de uma parada frente ao texto, ao ser humano, à família, para que o intérprete mergulhe no mundo da vida, reconhecendo que é um ser preconceituoso e que precisa afastar essa conduta do plenário jurídico, pois, em caso contrário, seus preconceitos ilegítimos não permitirão a plena compreensão do texto, do ser humano, da família.
Nas palavras de Stein, lembrando Heidegger, a pessoa e o essencial das coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente encobertos, havendo, pois, o que ele denomina de o primado da tendência para o encobrimento, significando que ideologia, interesse, repressão, tortura, alienação, reificação, são modos de totalização que comandam nossas teorias sobre o homem e a história . O reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão não é possível ser descoberto mediante um método, que se funda na razão humana, adverte Gadamer, mas, sim, pelo encontro do diálogo entre o passado e o presente, cujo confronto é tarefa permanente, incompleta, para que possamos rever, reavaliar, reprojetar as nossas posições prévias, os nossos juízos prévios. Para que o intérprete possa distinguir os preconceitos legítimos e ilegítimos, para tornar possível a compreensão, é indispensável o tempo, porque, na visão de Gadamer , “o tempo não é primeiramente um abismo que se deve ultrapassar porque separa e distancia”, mas é o fundamento que sustenta o acontecer, no qual se enraíza a compreensão atual. O que importa, prossegue o autor, é acolher a distância temporal como uma possibilidade positiva e produtiva da compreensão, que é preenchida pela “continuidade da origem e da tradição, em cuja luz se nos mostra tudo o que nos é transmitido”.
A hermenêutica, anota Gadamer, inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vem, por sua vez, à fala. Deve haver a vinculação do intérprete ao texto, ao ser humano e à tradição histórica da família, porque sem essa espiral hermenêutica, sem esse vínculo, não pode haver diálogo. Quem quiser compreender um texto deverá realizar um projeto, continua Gadamer, lançando, de antemão, um sentido da parte e do todo, com base em seus preconceitos autênticos e inautênticos. O primeiro sentido do texto se mostrará com certas perspectivas, dependendo do que o intérprete já sabe sobre o que está pesquisando. Esse sentido preliminar é um projeto prévio que sofre uma constante revisão, na medida em que o intérprete se aprofunda no sentido do texto , tornando, por isso, inviável a reprodução de sentido .
Em toda a compreensão do texto, da família, do ser humano, o intérprete sempre expõe os seus preconceitos límpidos e turvos, porque não existe um ser humano (da criança ao idoso) puro, isento de prejuízos (preconceitos), motivo pelo qual não é a vontade do intérprete ou a do texto que deve se impor, e sim o dialogar entre o texto e o intérprete, os quais já estão inseridos, previamente, em um mundo pré-posto, pré-lançado, em uma compreensão histórica da tradição da família. A esse respeito, Gadamer fala dos pré-conceitos que pesam sobre a visão dos fatos históricos, afirmando que os pré-juízos de um indivíduo, muito mais do que seus juízos, são a realidade histórica de seu ser , havendo necessidade de purificá-los, pelo seguinte: a) parte dos pré-conceitos não são elimináveis, e fingir-se não tê-los “significa permanecer mais gravemente suas vítimas e prisioneiros; ou então se permanece vítima do mais perigoso de todos, o preconceito de neutralidade, o presumir não ter preconceitos”; b) os preconceitos são os meios para agilizar o nosso encontro com a realidade do mundo, são o pré-julgar e o pré-ver que orientam o nosso juízo e o nosso olhar .
É por isso que Gadamer vai dizer que quem quiser compreender um texto não pode de antemão abandonar-se cegamente à causalidade das próprias opiniões, aos seus preconceitos, não ouvindo a opinião do texto e da tradição histórica da família. É aí que Gadamer pronuncia a célebre frase, de que quem quiser compreender um texto está disposto a deixar que ele diga alguma coisa, o que não significa a subjugação, neutralidade, auto-anulamento do intérprete ao texto, esquecendo as próprias opiniões sobre o que se pretende compreender, e sim a suspensão dos conceitos prévios (pré-conceitos, pré-juízos), uma conduta de abertura para o texto, ao contexto, à opinião do outro, à tradição histórica, uma atitude hermenêutica receptiva para a alteridade do texto, justamente porque, alerta Gadamer, os preconceitos que não são notados são justamente os que nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição, querendo dizer que “o intérprete não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstacularizam e que levam a mal-entendidos” . Portanto, prossegue o filósofo alemão, o intérprete deve permanecer neutro e receptivo ao texto, deixando que ele se apresente a si mesmo em sua alteridade, “de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria” , mantendo a necessária distância histórica e uma abertura para o diálogo entre quem compreende e quem busca compreender , porquanto é no palavrear com outras pessoas, textos e culturas que os preconceitos são corrigidos , inclusive porque “cada texto tiene su propia unidad de intención, que no es siempre ni necesariamente la intención del que lo escribe” .

03 Considerações finais
Como em todo o texto devem estar em jogo os preconceitos, não há como negar que é estranho que a Constituição do País não seja vista pelo prisma do estranhamento, do assombro, da alteridade, dos preconceitos do intérprete e da compreensão da tradição histórica do Direito de Família, porque a norma constitucional é um modo de ser-no-mundo, um existencial, tendo rompido com tudo o que havia anteriormente, sendo um novo marco histórico, uma nova Era, o Tempo do constitucionalismo. Mesmo assim, a nacionalmente reconhecida Constituição Cidadã continua deambulando descritivamente, (des)tratada pelo velho e surrado discurso do senso comum dos juristas, que continua exigindo o cumprimento de dezenas de preconceitos, entre os quais podem ser citados os seguintes:
a) o acolhimento unicamente da voz do sangue, esquecendo-se que a natureza humana é, simultaneamente, genética, afetiva e ontológica;
b) a necessidade do procedimento de habilitação e de celebração do casamento e dos processos de separação e de divórcio, visto que não é a lei, e sim o fim do mundo afetivo, a natureza humana, que (des)constitui a comunhão plena de vida genética, afetiva e ontológica. Quer dizer, não é legislador, e sim o ser humano quem vai determinar o início e o fim do mundo afetivo, motivo pelo qual, para (des)casar, basta comparecer no Cartório de Registro Civil, munido dos documentos, para, no mesmo instante, possa ser constituído ou desfeito o casamento;
c) a desigualdade entre união estável e casamento, quando ambas as entidades familiares têm por finalidade edificar o mesmo mundo afetivo do humano;
d) a rejeição da união estável homoafetiva, esquecendo-se que a natureza humana é genética, afetiva e ontológica, a qual não distingue a união entre homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher (gêneros humanos), mas, sim, entre seres humanos;
e) a necessidade do processo de adoção, prosseguindo na tri-milenar discriminação entre os filhos genéticos e afetivos. Há mais de três mil anos talvez houvesse razão para ser exigido um processo de adoção, em vista da ausência de igualdade no rosto familiar, mas, em um mundo universalizado em vários segmentos sociais, em um País em que o constitucionalismo está assentado sobre o Estado Democrático de Direito e numa principiologia republicana, não é razoável a existência de lei, de doutrina e de jurisprudência impondo um processo para alguém conviver e compartilhar em família. Numa só palavra, a comunidade jurídica e o Legislador preferem que milhões de crianças e adolescentes sejam moradores de rua ou meninos do tráfico do que permitir que a paternidade afetiva deles possa ser reconhecida voluntariamente, sem processo, para que sejam moradores de lares genéticos, afetivos e ontológicos;
f) a concessão dos alimentos unicamente com base no binômio necessidade-possibilidade, quando deveria ser com âncora no trinômio necessidade-possibilidade-afetividade, vez que não basta compreender a estupidez social tirânica da exclusividade do vínculo genético, mas, essencialmente, do mundo afetivo dos seres humanos, pelo que, para o membro familiar ter direito a alimentos, é preciso preencher o trinômio necessidade-possibilidade-afetividade. O mesmo ocorre com relação aos demais direitos da família, como os de herança, porque a herança genética não preenche os requisitos da natureza humana, havendo necessidade também, para herdar, por exemplo, ostentar a herança afetiva;
g) a esterilidade da discussão da culpa no Direito de Família, porquanto é a linguagem humana do fim do mundo afetivo que (de)marca a fronteira da (des)união familiar. O casamento e a união estável situam-se dentro do mundo afetivo, pelo que concordo que o fim do afeto é o fim do mundo, mas não dos três mundos humanos, e tão somente do mundo afetivo, da comunhão plena de vida afetiva, não sendo razoável manter o liame jurídico entre duas pessoas que não mantém o diálogo pela linguagem afetiva, acorrentando-os a um mundo que não mais existe. É por isso que o humano, para manter-se humano, precisa libertar-se desse imundo conjugal ou convivencial, porque a entidade familiar é um pacto de afeto, e não um pacto até que a morte ou a lei os separe. A manutenção jurídica, de forma coercitiva, de duas pessoas que não ocupam o mesmo espaço no mundo afetivo, é coisificar o ser humano, confinando os cônjuges ou conviventes ao mundo dos interesses monetários, ao mundo do instinto, ao mundo genético, confiscando-lhe, portanto, o direito de habitar os mundos genético, afetivo e ontológico;
h) o afastamento do direito do filho afetivo em conhecer (investigar) o seu mundo genético, na medida em que o ser humano tem direito à sua natureza humana genética, afetiva e ontológica, inclusive, se necessário, da condução coertiva do investigado, único responsável pelo confisco da tridimensionalidade da natureza humana;
i) a exclusão dos mundos afetivo e ontológico do ser humano mediante o aforamento da ação negatória de paternidade, como se o ato de reconhecer a paternidade, em pleno século XXI, ainda fosse uma conduta de aquisição de propriedade e de posse do ser humano, portanto, renunciável e transferível, a qualquer tempo. É dizer, o ideário, a vontade, a manifestação da paternidade não é efetivada dentro do mundo genético, do mundo das necessidades humanas, e sim no âmago dos mundos afetivo e ontológico, motivo por que, uma vez reconhecida/declarada a paternidade, nenhum ser humano poderá negá-la, revogá-la, sob pena de coisificar a natureza humana. Numa só palavra, não somente o reconhecimento da paternidade, como também a própria natureza humana, genética, afetiva e ontológica é indisponível, intangível, imprescritível, irrenunciável, intransferível, irrevogável etc.;
j) a diferença a ser localizada entre os humanos não é apenas genética e/ou afetiva, mas, sim, ontológica, que não poderá ser compreendida mediante um método, um procedimento, um processo, uma escada, de interpretação, de compreensão. É dizer, dentro do ser humano estão implantados o método, a escada, o procedimento, o processo, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, o (des)afeto, a lei, a doutrina, a jurisprudência, a súmula, o verbete, o enunciado, a natureza humana genética, (des)afetiva, ontológica etc. É por meio de um choque hermenêutico filosófico que o método, o processo, o procedimento, levantam o ser humano pelos cabelos, deixando-o suspenso. Essa suspensão da natureza humana é efetivada por uma escada, um processo, um procedimento, endógeno (interno), e não exógeno (do lado de fora), do ser humano, pelo que ele não poderá ser alcançado pelos métodos de interpretação que se localizam do lado de fora do humano. Quer dizer, todos os procedimentos/processos contrários à tridimensionalidade da natureza humana são formas de desumanizar, objetificar, coisificar, o ser humano.
É por isso que Streck denuncia que o discurso da dogmática jurídica “é o desde-já-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, que proporciona a rotinização do agir dos operadores jurídicos, propicionando-lhes, em linguagem heideggeriana, uma ‘tranqüilidade tentadora’” . É justamente essa a linguagem do intérprete, pois permanece, há vários séculos, em sua tranqüilidade tentadora, ao rejeitar a normatização e/ou declaração da afetividade e da ontologia, compreendendo o Direito nos estreitos limites da lei, sendo bem mais cômodo prosseguir com o desde-já-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, porque isso evita que sejam expostos os preconceitos e desenvolvida uma nova leitura e uma nova compreensão do mais importante texto do País. Nossos prejuízos, conclui Streck, estão alicerçados em uma cultura liberal-individualista, em que as leis infraconstitucionais não sofreram a indispensável e necessária filtragem hermenêutico-constitucional, fazendo com que os pré-conceitos estejam tomados por um histórico de jurisdição constitucional que beira ao surrealismo.
A respeito da necessidade da passagem do texto legal pelo filtro da Constituição do País, os Tribunais pátrios têm citado Lenio Luiz Streck , o qual, na esteira do garantismo de Ferrajoli, tem dito que o texto tem dois âmbitos: vigência e validade. Quer dizer, não basta que o texto seja vigente, mas que também tenha validade, porquanto, embora vigente, o texto somente será válido se de acordo com o texto constitucional, em sua materialidade e substancialidade. Noticia o autor também que é por isso que o Legislador ordinário (por exemplo, do ECA e do Código Civil), não é livre para estabelecer leis, que deverão passar sempre pela “necessária filtragem hermenêutico-constitucional do sistema jurídico, fazendo com que todo o ordenamento fique contaminado pelo ‘vírus’ constitucional”. Streck lembra que, devido a essa ausência de antivírus constitucional, a doutrina, como Jiménes de Azúa, chegou a afirmar que, ao ser promulgada uma nova Constituição, “todos os Códigos deveriam ser refeitos, para evitar o mau vezo de se continuar a aplicar leis não recepcionadas ou recepcionadas apenas em parte pelo novo topos de validade, que é o texto constitucional”. Concluindo seu pensamento, Streck anota que, em vista da ausência da validade da lei frente à Constituição do País, caberá ao Poder Judiciário promover as correções dessas leis, com base em sua “função integradora e transformadora, típica do Estado Democrático de Direito”, utilizando-se, para tanto, dos mais recentes mecanismos hermenêuticos, por exemplo, “a interpretação conforme à Constituição, a nulidade sem redução de texto e a declaração da inconstitucionalidade das leis incompatíveis com a Constituição”.
A Constituição do Brasil, ao introduzir, por exemplo, os princípios da dignidade da pessoa humana a da igualdade entre todos os filhos, deveria ter sido seguida materialmente pelas leis infraconstitucionais. Entretanto, não foi o que aconteceu, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil desvirtuaram o texto constitucional, ao continuarem exigindo um procedimento, um processo, para que o ser humano possa conviver e compartilhar em família. Portanto, embora sejam compreendidos como textos legais vigentes, o ECA e o Código Civil não são textos válidos frente à Constituição do País, justamente por causarem ofensa à materialidade e à substancialidade da Constituição Humana de 1988, que não recepcionou o procedimento, o processo, a objetificação, para que o ser humano possa conviver e compartilhar em família.
Qualquer interessado poderá sustentar a inconstitucionalidade do procedimento e do processo, mediante o que Streck  denomina de nulidade parcial sem redução de texto, para que sejam expungidos dos sentidos de uma ou de parte da norma. Depois, o autor explica a diferença entre a inconstitucionalidade de lei conforme a constituição e nulidade parcial sem redução de texto: “enquanto na interpretação conforme a constituição há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto há uma abdução de sentido”, cuidando-se, portanto, conclui o autor, de uma “decisão de acolhimento parcial qualitativa (e não quantitativa, porque o texto permanece na íntegra) da norma”.
Por isso, o julgador poderá declarar a inconstitucionalidade, não de todo o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil, e sim unicamente das partes que exigem, por exemplo, um procedimento (de habilitação e de celebração, para casar), um processo (de adoção, de separação, de divórcio, de dissolução da união estável, para dissolver o mundo afetivo), isso porque, lembra o autor, todo ato judicial é ato de jurisdição constitucional, já que o julgador sempre faz jurisdição constitucional, sendo, por isso, “dever do magistrado examinar, antes de qualquer coisa, a compatibilidade do texto normativo infraconstitucional com a Constituição” .
A Constituição é um existencial, um modo de ser-no-mundo, mas Heidegger pondera que, paradoxalmente, quanto mais próximo o intérprete estiver do existente, mais distante estará da verdade hermenêutica-ontológica . Dessa forma, é preciso fazer uma parada obrigatória frente ao texto constitucional, perguntando a ele o que há de novo, o que mudou e qual o sentido da estrutura dessa revolucionária Carta Cidadã, colocando em jogo (em questão, no caso em concreto) os preconceitos, deixando que o texto diga alguma coisa, mas vinculando-nos a ele, porque onde não há vínculo, não pode haver diálogo , deixando a linguagem vir-à-fala, formando o círculo hermenêutico, a fusão de horizontes e incorporando a compreensão da tradição histórica do Direito de Família. Promover uma comparação entre a Revolução Francesa e a Constituição do Brasil talvez possa ser uma lembrança para que o intérprete abandone a sua tranqüilidade tentadora, pois a importância que os brasileiros deveriam dedicar à Constituição de seu País é a mesma que o mundo dedica à Revolução Francesa, vez que ambos são acontecimentos históricos que mudaram o percurso da humanidade e do Brasil, respectivamente, cujos textos e contextos sempre deverão ser relembrados e observados. É preciso, pois, como diz Streck , des-objetivar a Constituição, mediante a superação do paradigma metafísico do senso comum dos juristas, indagando pelo sentido do constitucionalismo, seu papel histórico-social no terceiro milênio.
Os preconceitos normativos, doutrinários e jurisprudenciais acima citados, por exemplo, são preconceitos impuros, que ocorrem desde a origem da família, quando, na visão de Engels , foi gestada a primeira divisão do trabalho, originando a opressão de classes, cabendo ao homem trazer a alimentação, tornando-se o proprietário dos instrumentos de trabalho e, na medida em que aumentavam os bens, assumia uma posição vantajosa frente à mulher, até que houve a abolição dos direitos de filiação e da herança feminina, direitos esses substituídos pela filiação e pelo direito hereditário masculino. É justamente pela existência de tantos preconceitos familiares, que se tornaram paradigmas impuros, que é tão difícil fragmentá-los, tendo em vista que o ser humano não admite ser portador de preconceito inautêntico, de que algum dia tenha sido ridículo, praticado alguma violência, uma infâmia, uma discriminação, uma tortura ou de ter cometido um pecado venial, porque o ser humano acredita cega e hipocritamente ser o único ser Ideal, campeão e semideus . Essa é uma das razões da comunidade jurídica e do Legislador resistirem aos avanços da hermenêutica filosófica, porque isso representaria a aceitação de suas falhas, de seus preconceitos adulterados, transformando-os em humanos impuros. É dizer, a hermenêutica filosófica somente conseguirá quebrar o paradigma espúrio dos laços de sangue se houver a mudança da crença da natureza do ser humano, que sempre foi, é e será genética, afetiva e ontológica, significando que todos os seres humanos são iguais em sua natureza, mas finitos, sujeitos a acertos, a erros e a conviver e a compartilhar, paradoxalmente, em três mundos diferentes e simultaneamente iguais.
A compreensão do Direito de Família deve ser no sentido de que lidamos com um ser humano não apenas genético, mas também afetivo e ontológico, o que exige a interpretação do Direito não mediante um método subjetivo, e sim universal, em que o intérprete, mediante o círculo hermenêutico e a fusão de horizontes, mergulha na tradição histórica do Direito de Família, procurando compreender o atual texto constitucional pelo contexto histórico das evoluções e revoluções da família. Com efeito, pelo Direito Romano, o homem tinha o poder de vida e de morte sobre a mulher, os filhos e escravos. No Brasil, por longos séculos, imperaram os paradigmas da discriminação, da hierarquia, da desigualdade familiar e da manutenção do casamento em detrimento da felicidade de seus membros. Mas, a contar do dia 05 de outubro de 1988, a Constituição Cidadã fez prevalecer os direitos e desejos de todos os membros da família, substituindo a hierarquização pela democracia, o autoritarismo, a arbitrariedade, a violência, o totalitarismo, a opressão e a tirania pela conduta digna, democrática, humana, solidária, protetiva, hermenêutica, genética, afetiva e ontológica no abrigo familiar. Portanto, a pré-compreensão do intérprete deve ser no sentido de que houve uma revolução familiar com a promulgação da Constituição Democrática e Republicana de 1988, em que tudo mudou, tudo se tornou digno, tudo se tornou democrático, tudo se tornou afetivo, tudo se tornou ontológico, tudo se tornou solidário, tudo se tornou hermenêutico, tudo se tornou filosófico, tudo se tornou um vaivém da palavra, tudo se tornou um modo de ser, um jeito, uma circunstância de ser em um mundo humano. Com esse círculo da compreensão, efetivado pela compreensão histórica da tradição do Direito de Família, o intérprete, pela fusão de horizontes, suspenderá os seus preconceitos inautênticos, impuros, ilegítimos, comungados anteriormente ao texto constitucional de 1988.
A compreensão de um texto não se dá mediante um método, que objetifica, coisifica o texto , o ser humano, a família, e sim pela palavra, pela linguagem, que, conforme Heidegger, é a casa do ser, é a habitação da essência do ser humano, ou, nas palavras de Gadamer, ser que pode ser compreendido é linguagem. Quer dizer, uma pausa deve repousar sobre a atual compreensão do Direito de Família, para que o texto da Constituição não seja compreendido unicamente pela visão do intérprete, nem do Legislador, mas deixar que o texto, a família, o humano digam algo, empreendendo, dessa forma, uma viagem hermenêutica filosófica ao âmago do método fenomenológico, da circularidade da compreensão histórica da tradição da família, da fusão de horizontes e da suspensão dos preconceitos, vez que no intérprete, no texto, no ser humano, na família, no caso em concreto, existem preconceitos que cegam e preconceitos que iluminam, tendo em vista que, ao nascer, somos lançados em um mundo já existente, um mundo de significados e de valores, um mundo abarrotado de conceitos prévios democráticos e tiranos, cabendo-nos a missão de identificá-los e purificá-los . E aquele que não se conscientizar dos preconceitos puros e impuros acaba se enganando sobre o que se revela sob sua luz, exigindo-se do intérprete uma conduta receptiva à alteridade do texto, da família, do ser humano, visto que um conceito prévio falso é uma pré-decisão, uma pré-compreensão, um pré-julgamento, que pode estar ocultando a verdade, causando, conseqüentemente, graves prejuízos à humanidade. Como compreender é sempre um interpretar, uma forma explícita da compreensão, o problema da linguagem, que ocupava uma posição ocasional e marginal na dogmática jurídica, passa, com a hermenêutica gadameriana, a ocupar o centro da filosofia .
Quando da compreensão da Constituição do Brasil, o intérprete deve deixar que a linguagem do texto, da família, do ser humano, digam alguma coisa, porque no es que únicamente nosotros conduzcamos la conversación, sino que también somos conducidos por ella , isto é, a linguagem nos diz que a Constituição é um acontecimento, a ocorrência de um fenômeno, uma viragem histórica, uma relevância para todo o povo brasileiro, a passagem de uma geração para outra, quando tudo ficou diferente, tudo mudou, tudo se transformou, tudo envelheceu, mas, ao mesmo tempo, tudo ficou novo, formou-se o poente e o nascente, o que antes foi, já não é, aparecendo algo novo, que tornou tudo novo, uma nova linguagem constitucional, transformando o (des)tratamento imundo do humano, da família, para uma linguagem com natureza e dignidade humana genética, afetiva e ontológica.
Porém, não basta que o País esteja mergulhado em uma nova Era Constitucional, se continua a viver o novo com o arcabouço jurídico velho, e sim que essa nova Idade seja compreendida pelo estranhamento, pelo assombro, pela admiração, pelo desconserto, pela perplexidade, pelo espanto, pela vinculação a um marco histórico de rompimento dos preconceitos turvos do passado. Esse espanto, que o intérprete e o Legislador ordinário devem ter diante do texto, do ser humano, da família, significa “que reconhecemos nossa ignorância e exatamente por isso podemos superá-la. Nós nos espantamos quando, por meio de nosso pensamento, tomamos distância do nosso mundo costumeiro, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos” .
Nesse horizonte, a doutrina gadameriana ensina que “todo esse desacerto, assombro e incompatibiliade na compreensão convida sempre a avançar a um conhecimento mais profundo” . Além disso, o autor sugere o entrelaçamento entre o intérprete e o texto, fazendo com que a pré-compreensão, os preconceitos, do texto, do ser humano, da família, não sejam formatadas unilateralmente pelo intérprete, pelo texto ou somente pelo caso concreto, mas, sim, pelo contexto entre o texto, o intérprete, o mundo, a tradição histórica da vida familiar, num círculo hermenêutico e de fusão de horizontes, com uma linguagem fenomenológica e universal, um modo de ser-no-mundo, um acontecer da universalidade dentro da singularidade e da singularidade dentro da universalidade , isso porque no se entiende la palabra aislada, no se entiende palabra a palabra .
Com isso, Gadamer pretende dizer que a indagação ao texto, ao ser humano, à família, propicia a compreensão desta indagação, aquela com a qual o texto, a família, o ser humano, interpelam o intérprete. Todavia, para perguntar, é preciso querer saber, confessar que não se sabe , sendo talvez esse o maior problema da comunidade jurídica e do Legislador, na medida em que falta a todos os humanos: a) a humildade para admitir que não sabemos; b) que temos preconceitos preconceituosos (ilegítimos, espúrios, impuros); c) que não nos apossamos integralmente do sentido e da linguagem do texto, do ser humano, da família. Isso vem ao encontro da advertência gadameriana, de que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” , querendo dizer com isso que “compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal” .
Há, asssim, premente necessidade do intérprete e do Legislador passarem à condição de lenhador, de guardião, de desvelador, de descobridor dos caminhos do texto, do ser humano, da família, desterrando os velhos conceitos prévios, pois, para perguntar, é preciso conhecer a coisa a ser pesquisada, discutida, examinada, compreendida/interpretada/aplicada, pois a expressão gadameriana – sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar  – serve justamente para evitar que os caminhos da floresta do texto, do ser humano, da família, não permaneçam sinuosos, preconceituosos, perdendo-se, subitamente, no não trilhado .
Nesse sentido, os seguidores  da doutrina gadameriana comentam que o intérprete que não tiver uma compreensão prévia, uma visão provisória, um juízo precoce, um pré-juízo, um experimentar a nós mesmos, uma exposição ao risco de ver-se surpreendido, não terá a mínima capacidade de colocar perguntas orientadoras ao texto, ao ser humano, à família. Isso significa que o “compreender recusa qualquer postura subjetiva de domínio e, em conseqüência, de instrumentalização do mundo objetivo”, porquanto “toda compreensão se efetua na linguagem e na história, por nós de modo algum objetiváveis”. Isso ocorre porque a hermenêutica filosófica gadameriana é “um curioso arrombamento, sem violência, da postura intelectual objetificadora de que somos herdeiros” , um giro ontológico em direção ao que vem a ser o objeto da compreensão: a linguagem .
A Constituição somente poderá ser desvelada, desocultada, descoberta, se o intérprete e o Legislador estiverem munidos de preconceitos puros, e não dos pré-juízos inautênticos da opressão e da tortura familiar. Nesse viés, concordo com Gabriel García Márquez , quando afirma o seguinte em sua “Crônica de uma morte anunciada”: Dai-me um preconceito e moverei o mundo, pelo que, parafraseando o autor, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, com preconceitos impuros é possível desvirtuar os sentidos das estruturas do texto constitucional, da família, do ser humano, mas, com pré-conceitos puros, move-se a Constituição, a família, o texto, o mundo, em direção ao verdadeiro significado, sentido, sentimento e linguagem de família e de ser humano genético, afetivo e ontológico.
Para conviver e compartilhar, o ser humano precisa compreender o outro, porque a família, o ser humano, têm natureza tridimensional, mergulhados na paz endógena e exógena de solidariedade, de compreensão, de diálogo, do vaivém da palavra, um jeito, um modo, uma circunstância, uma condição de ser e de estar-no-mundo. Se estar-no-mundo significa que o ser humano compreende e é compreendido, o estar-em-família é muito mais do que se entender uns aos outros, é amar-se, é respeitar-se, principalmente, em sua diferença ontológica, nessa comunhão plena de vida familiar genética, afetiva e ontológica, isso porque é na família que se instaura o mais puro e autêntico plenário da linguagem, do diálogo e da compreensão do ser humano em sociedade, em família e consigo mesmo. Nessa senda, Gadamer lembra uma passagem de Heidegger, quando ele afirmou que o ser humano ‘es weltet’, porque ele faz mundo, e isso significa que “quien escucha al otro, escucha siempre a alguien que tiene su propio horizonte”, fazendo com que nessa escuta ao outro “se abre el verdadero camino en el que se forma la solidariedad”. Essa forma brilhante e manifestamente humanitária de Gadamer visualizar a introspecção da solidariedade, que habita em cada ser humano, pelo simples fato de escutar o outro humano, é para que cada humano “aprenda a salvar las distancias y a superar los antagonismos entre nosotros” .
Antes de concluir o breve diálogo, registro mais uma mensagem de Gadamer, quando ele estudou os mistérios da saúde, referindo que “o paciente é uma pessoa, e não um ‘caso’” . Por isso, quando se lida com o ser humano, com a família, é preciso compreendê-los não como um caso, uma parte de um processo, querendo-se dizer que, quando da compreensão do texto, do ser humano, da família, não estão em jogo “casos”, “partes”, à medida que esses “casos”, essas “partes”, são pessoas, são humanos, somos todos nós, que convivemos e compartilhamos, simultaneamente, nos mundos genético, afetivo e ontológico.
Muito ainda precisa ser dito acerca do texto, da família, do ser humano e da infinita necessidade da conversação, do diálogo, do escutar e do ser escutado, da fusão de horizontes, da compreensão histórica da tradição familiar, dos conceitos prévios puros e impuros, da aceitação da diferença ontológica que habita em cada humano e da hermenêutica filosófica. Contudo, o texto precisa ser concluído, e o faço com o mesmo argumento apresentado pela magna doutrina de Hans-Georg Gadamer, quando ele encerrou a sua célebre obra Verdade e Método , nos seguintes termos: “Seria um mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última palavra”, pois a história está em curso e nunca compreenderemos, nem mesmo por meio da universalidade da hermenêutica filosófica, a totalidade dos acontecimentos do passado, do presente e do futuro, que sempre estão se renovando, portanto, presentes em cada nova compreensão do texto, da família, do ser humano. Isso significa que não existe a primeira, nem a segunda e nem a última palavra, porque somos seres históricos preconceituosos, motivo pelo qual cada compreensão é uma nova compreensão do texto, da família e dos três mundos genético, afetivo e ontológico do ser humano.

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Um comentário:

  1. Parabéns pelo blog. Aproveito para divulgar o meu,estou iniciando. Minha única experiência é ter vivenciado uma amarga decepção com a Justiça do meu país. Entenda o meu blog como um desabafo infelizmente é tudo que posso fazer.

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